As técnicas relacionadas ao bushcraft e os equipamentos para a prática do mesmo são somente meios para se chegar a um fim: a reconexão mais profunda com a natureza.
Continuando nossa conversa do artigo anterior sobre bushcraft e a reconexão com a natureza, hoje vamos falar mais sobre o triângulo do bushcraft, suas possibilidades e riscos.
A base do triângulo (o eixo Técnicas x Equipamentos)
Sem dúvida alguma, um dos aspectos mais fáceis de identificarmos no que tange a prática do bushcraft está relacionado com a grande pluralidade de técnicas e equipamentos empregados na atividade. Existe uma infinidade de lâminas como facas, canivetes, facões, machados e serras cujos perfis e desempenho variam de acordo com a cultura ou povo que lança ou lançava mão de tais ferramentas através de nossa história.
Outras técnicas como produção de fogo através de formas antigas, utilizando fricção ou fagulhas, ou ainda, formas mais contemporâneas como a utilização de pederneiras ou outros mecanismos, também tendem a chamar bastante atenção atualmente. Elas são mostradas, difundidas e utilizadas amplamente, quer seja em programas de televisão ou em várias plataformas da internet, como YouTube, Instagram ou Facebook. Isso sem falarmos na criação de abrigos, cordas, recipientes, entre outros itens e objetos.
Até aqui tudo bem, pois, como afirma Ray Mears, o bushcraft é a mistura do antigo e do contemporâneo. Se observarmos bem, desde a pré-história até os dias de hoje, o ser humano sempre se relacionou com a natureza, com um grau maior ou menor de contato, e tal relacionamento era acompanhado pelo desenvolvimento tecnológico de cada época. Na era paleolítica, o conhecimento dos tipos de rocha lascáveis e as técnicas de lascamento permitiam ao ser humano criar lâminas e ferramentas de pedra como facas, machados e pontas de flecha que eram usadas no cotidiano das pessoas. Seguindo o desenvolvimento metalúrgico, descobrimos como processar e produzir mais uma infinidade de metais, como o cobre, bronze, ferro e o aço, até chegarmos às ligas de metal da atualidade, produzindo utensílios e ferramentas que eram e ainda são usadas no mato. Cada cultura produziu seus objetos, conforme sua necessidade e recursos naturais disponíveis.
Como praticantes das artes do mato, no século XXI, temos todas essas incontáveis opções de abordagem de técnicas e equipamentos para interagirmos com o mundo natural segundo nosso próprio desejo. Tudo isso é muito bom, pois nos oferece a possibilidade de abordarmos a natureza segundo cada uma dessas possibilidades. Podemos ir para o mato, treinar e praticar técnicas paleolíticas ou neolíticas e ter uma experiência mais próxima da realidade daquele momento (pelo menos no que tange às técnicas e equipamentos).
Por exemplo, uma vez, um grande amigo meu e também instrutor de sobrevivência e bushcraft, Humberto Costa e eu, ficamos 10 dias acampados utilizando apenas equipamentos artesanais produzidos por nós mesmos. Foi uma tentativa de recriarmos (ainda que parcialmente) um contexto pré-histórico, sem a presença de metal, plástico, borracha ou quaisquer outros materiais da atualidade. Tudo isso para interagirmos com a natureza, segundo uma abordagem mais “primitiva”, por assim dizer. Há outras pessoas que preferem uma abordagem segundo a cultura nórdica, dos assim chamados vikings. Elas reproduzem desde as aldeias e vilas nórdicas, até objetos, utensílios e roupas que eram adotados por tais povos. Isso lhes permite, além de outras coisas, experimentar como era a vida e o cotidiano dessa gente, com aquilo que eles usavam normalmente em seu dia a dia.
Ou se preferirmos, podemos ir para o mato com aquilo que há de mais tecnológico e contemporâneo, em termos dos equipamentos e técnicas mateiras atuais: facas de aço, pederneiras, roupas, barracas, redes e mochilas de nylon, por exemplo. Ainda assim podemos ter, também, uma aproximação mais profunda da natureza, que é o que importa, de fato. Portanto, há uma grande variação na abordagem de usos de técnicas e equipamentos de cada momento.
Todas essas formas de interagirmos com o meio ambiente são apenas o meio para chegarmos e estarmos lá. Elas não representam o fim, em si. O objetivo principal, como já apontado anteriormente, é buscarmos uma reaproximação da natureza, não importando muito a forma que escolhemos para estar lá.
A inversão do triângulo do bushcraft (e seu risco a natureza e ao próprio bushcraft)
As técnicas e equipamentos são somente meios para se chegar a um fim que é a reconexão mais profunda com a natureza. Porém, existe certo risco de haver uma inversão do triângulo do bushcraft, colocando as técnicas e equipamentos em primeiro lugar, relegando a reconexão mais profunda com a natureza à um plano inferior e menos importante. Isso significa trocar os meios pelos fins, e neste caso, tal ação pode tirar o cuidado com a natureza que deveria estar em primeiro lugar. Nós não vamos para o mato porque compramos ou adquirimos tal faca, mochila ou quaisquer outros equipamentos. Todas essas coisas são, sim, importantes, mas não devem ser a razão que nos impulsiona a estarmos lá. Como já dissemos, esses são apenas meios para estarmos lá.
Como diria Thoreau, nós não vamos para o mato para “ralar”, mas sim, para pegar leve. Isso implica, também, em termos responsabilidade para com aquilo que fazemos enquanto estivermos lá. Ou seja, não é porque temos um facão ou machado que nós devemos sair cortando plantas e vegetação indiscriminadamente. Já vi ditos praticantes de bushcraft quererem cortar árvores e plantas para fazer um abrigo natural para passarem apenas uma noite no final de semana. Isso é errado. O certo seria levarmos uma rede de selva ou barraca de camping para nos servir de abrigo. Construções naturais devem ser evitadas em parques e em áreas públicas ou de preservação ambiental e só deveriam ser feitas em áreas particulares, com a autorização prévia dos donos (caso não o seja o praticante de bushcraft o proprietário em questão). Além disso, de preferência, usemos bambus para as pioneirias e abrigos, ao invés de cortarmos árvores do local. O corte de bambu não constitui um crime ambiental em si (a menos que seja feito em uma área de preservação ambiental), pois essa planta é uma gramínea com crescimento rápido de feixes orientados.
Outro exemplo que podemos dar está relacionado com a produção de fogo, que apesar de importante em certas circunstâncias, também pode causar desastres ambientais enormes e irreparáveis para a fauna e flora do local. Há certos lugares aqui em Minas Gerais onde eu vivo, em áreas montanhosas muito secas e com grande incidência de vento, em que uma simples e pequena fogueira pode ter suas brasas levadas e espalhadas pelo vento, trazendo risco de incêndios e ameaçando assim uma grande extensão de terra.
É imprescindível que o praticante de bushcraft tenha em mente todos estes aspectos e cuidados, na hora de sair para praticar essa atividade. Um grande amigo e mateiro, Dave McIntyre, costumava dizer que “para quem tem cabeça de martelo, tudo que se vê é prego”. Ou seja, só porque temos a capacidade de fazer fogo, por exemplo, não significa que devemos fazê-lo sempre e/ou em qualquer lugar.
Se tais cuidados para com a natureza desaparecerem de nossa atividade, a prática do bushcraft pode vir a se tornar danosa e nociva para o mundo natural, criando, assim, um grande estigma em nossas sociedades contemporâneas, como algumas outras atividades já mencionadas no post anterior. E, caso isso ocorra, o bushcraft terá falhado miseravelmente em sua missão.
Não permitamos, nunca, que tal coisa aconteça!
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