Foto em destaque por Guilherme Cavallari
O termômetro pendurado do lado de fora da mochila marcava -9˚C e meus pés estavam molhados e frios. O sol já tinha se posto. Momentos antes, eu havia feito uma pequena fogueira às pressas. Juntei galhos tão secos que pareciam fósseis e taquei fogo. As labaredas surgiram deitadas, completamente horizontais devido ao forte vento, soprando todo calor pra longe. Desperdício de lenha, pensei decepcionado.
O cenário à minha volta era estupendo, cinematográfico mesmo. Eu estava num corredor largo e plano, aberto pelo rio milhões de anos atrás, com o corte d’água riscando arabescos no meio da pedraria. Montanhas mistas de bosques e rochas, não muito altas, cercavam o corredor e estavam todas pintadas de branco. Era final de outubro, outono na Patagônia chilena, eu já havia pedalado 1.000 km sozinho e autossuficiente, evitando asfalto, e fazia o primeiro roteiro de trekking selvagem na minha programação. Restavam ainda outros 5.000 km a pedalar e mais de 500 km a caminhar. Aquilo era só o começo de uma expedição de seis meses de duração.
Fazia quatro anos que eu sonhava em tentar essa travessia, de Chile Chico a Cochrane, por um atalho rústico e sem estradas, paralelo à Carretera Austral, usado no passado pelos pioneiros criadores de ovelhas da região. Eu tinha uma descrição geral da direção a seguir, mas a neve que ainda cobria tudo escondia qualquer trilha que houvesse. Eu literalmente tateava cada passo.
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Foto por Guilherme Cavallari
Pegadas frescas de pumas na neve velha fizeram meu sangue gelar mais um pouco. Eu queria muito ver um puma solto na natureza, esse inclusive era o objetivo simbólico da expedição, mas naquele dia cinza, de céu baixo e vento cortante a ideia parecia absurda. Deixa o puma pra amanhã, comentei mentalmente com meus bastões de caminhada.
Depois de subir uma montanha baixa com neve nos joelhos, cair num buraco escondido pela massa gelada e ter que me arrastar pra fora, provocar um pequeno deslizamento de pedras com meu peso e ter que me agarrar a árvores baixas e retorcidas pra não rolar penhasco abaixo, cheguei ao vale pedregoso com o riacho sinuoso. Tanto trabalho pra sair da frigideira e caí no fogo, foi meu único pensamento, um pouco depressivo.
A região estava alagada pelo degelo do inverno. Eram tantos córregos a saltar ou evitar que eu caminhava em ziguezague. Apesar das botas serem impermeáveis, a quantidade de água era tamanha que mais cedo ou mais tarde elas encharcariam. Era inevitável. E um arrepio correu pela minha coluna com a conclusão.
Foi quando cheguei a um afluente do rio maior do vale. Fundo demais pra passar correndo, largo demais pra pular, gelado como tudo. Não quero molhar os pés ainda, teimei e sentei numa pedra na margem. Meu canivete — um Leatherman Skeletool CX —, estava no bolso da calça. Tirei, enrolei a cordinha roxa que mantinha nele pra facilitar o manuseio e depositei a peça em cima de uma pedrinha. Vesti sacos de plástico por cima das meias e por dentro das botas pra cruzar o riacho. Normalmente eu simplesmente tiraria meias e botas e atravessaria descalço, mas aquele era o primeiro mês da longa expedição e eu ainda estava meio covarde. Só me dei conta que o canivete havia ficado na margem do rio quando fui acender a fracassada fogueira no acampamento.
Nessa travessia eu usava um saco de bivaque, um envelope impermeável de nylon vestido por cima do saco de dormir e do isolante térmico. Não tem nada mais leve e compacto pra acampar. Nem nada mais desconfortável. Deitei com os pés gelados e puto da vida por ter perdido o canivete ainda no começo da expedição. Se começou assim vai terminar mal, foi meu último pensamento antes de apagar.
Acordei pra fazer xixi no meio da noite e o céu estava em festa. Eram tantas estrelas e tão brilhantes no ar impecavelmente limpo que eu quase sentia o peso delas. O vento seguia uivando e cortando mas eu não estava com frio. Meu equipamento era apropriado, acertei na escolha. Lembrei então do canivete e lembrei exatamente onde eu o havia deixado, com a cordinha roxa enrolada e em cima da pedra, na margem do rio. Amanhã volto tudo pra recuperá-lo, acho que falei em voz alta antes de voltar pra cama.
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Foto por Guilherme Cavallari
De manhã, uma grossa camada de gelo cobria o saco de dormir. A condensação da minha respiração à noite virara gelo. Minhas botas pareciam tamancos de madeira, com toda a água nelas também congelada. Não foi nem um pouco agradável calçá-las pra começar o dia. Depois do café da manhã, de chá preto com leite em pó em água fervente e muito mingau de aveia, me senti revigorado e pronto pra tudo. Como prometido, refiz o caminho do dia anterior, ignorando poças, córregos e o próprio riacho, até reaver o canivete. Eu não alimentaria covardias nem acolheria erros nessa viagem. Não me arrependi.
Se esse episódio deixou alguma lição, seria: errar faz parte de qualquer caminhada desafiadora, identificar e corrigir nossos erros é aquela oportunidade de ouro que não se deve jogar fora.
A história narrada aqui faz parte, escrita de outra forma, no livro TRANSPATAGÔNIA: PUMAS NÃO COMEM CICLSITAS. Mais informações no site www.kalapalo.com.br.
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