Bushcraft, Outdoor, Sobrevivência

Comida mateira: um prazer que poucos conhecem

junho 29, 2022
comida-mateira-santaangga-kurniawan-QDfqkwfXQ5s-unsplash
Tempo de leitura 11 min
A comida mateira abrange um escopo muito amplo no que se diz respeito à alimentação.

Quando comento com as pessoas que trabalho com técnicas de sobrevivência e bushcraft e que gosto de passar dias acampando em áreas de matas e florestas, uma pergunta que ouço com frequência diz respeito ao tipo de comida que eu consumo nesses ambientes. E apesar, sim, de haver oficinas nestes cursos que ministro, em que ensinamos a obtenção de “comida selvagem”, como insetos variados e plantas comestíveis que são preparadas de forma muito rudimentar, essa não é a realidade de minha alimentação na maioria das vezes que estou em campo, quer seja trabalhando ou realizando qualquer outra atividade nesses ambientes naturais.

Muito desta noção relacionada ao consumo de insetos crus e outras coisas que causariam um rebuliço no estômago e intestinos da maioria das pessoas vem de programas de TV ou filmes de ação, em que o protagonista precisa procurar qualquer coisa que possa ser usada como alimento, como larvas e insetos dos mais variados, ou ainda, ele precisa comer restos de uma carcaça de animal já em processo de decomposição parcial. Certamente, estes não são os tipos de comida com que sonhamos e desejamos como parte de nossa dieta sendo natural que as pessoas criem essas noções errôneas acerca do que a natureza pode oferecer em termos não apenas de nutrição, mas também em termos de sabor.

comida-mateira-leonardo-di-caprio-regresso

Leonardo DiCaprio come um fígado de bisão cru no filme “O Regresso“. (Foto: Reprodução)

E se por um lado existem programas de TV com as abordagens gastronômicas já mencionadas, por outro lado, há outros programas que mostram verdadeiros chefs de cozinha indo para a selva em busca de recursos alimentícios, como temperos e outras iguarias naturais. Um ótimo exemplo é o programa Sabores Extremos, com Gordon Ramsay, um renomado chef da cozinha inglesa.

O fato é que há diversas possibilidades e opções ao se tratar do que há para comer no mato e como preparar essas refeições lá. Tais comidas podem ser consideradas verdadeiras pérolas da gastronomia mateira sem que tenhamos de lançar mão da caça ou do abate de animais selvagens.

comida-mateira-sabores-extremos-gordon-ramnsey-peru

Gordon Ramsay prepara um banquete para fazendeiros locais no Vale Sagrado do Peru durante o programa Sabores Extremos. Foto: Reprodução/NATIONAL GEOGRAPHIC/ERNESTO BENAVIDES

No entanto, um aspecto que devemos estar atentos e levar em conta quando utilizamos qualquer tipo de recurso natural, especialmente em se tratando da flora da região, são as plantas tóxicas que possam ser encontradas na área e que, de fato, podem causar sérios problemas se ingeridas por engano, como foi mostrado no filme “Na Natureza Selvagem”. A história do rapaz que faleceu no Alaska ficou famosa também por exemplificar quão fatal e trágico pode ser o consumo enganoso de recursos naturais que podem levar à morte – como foi o caso dele.

Existem testes relativamente seguros como o identificado pela sigla C.A.L. (cabeludo, amargo e leitoso) e que já excluem as plantas que possuam essas características, apesar de também haver exceções à regra. Já outros testes revelam se a planta em questão pode ser consumida como alimento ou não. Porém, eles requerem dias para serem executados de forma segura e, naturalmente, precisa haver uma quantidade satisfatória desses recursos no local para justificar toda a dedicação e o investimento de tempo necessários para determinar seu uso como um recurso alimentício.

comida-mateira-cabeludo-amargo-leitoso-kiwi

O kiwi é uma exceção à regra C.A.L.; assim como o mamão, que pode soltar uma espécie de leite.

Tal teste consiste nos passos a seguir e, caso não haja uma reação negativa, passa-se para a próxima etapa:

  1. Utilizar pequenas porções da planta, de maneira a esfregá-la em partes do corpo em que a pele seja mais sensível, como no pulso ou na dobra do braço e antebraço. Se houver na pele qualquer reação como inchaços, irritação ou coceiras, a planta já foi reprovada nesta primeira etapa.
  2. Cortar pequenos pedaços ou porções do recurso pesquisado, tocando os lábios levemente com essas porções e esperar algumas horas para ver se aparecem reações e sensações como queimaduras, ardência e coceira.
  3. Neste ponto, um pequeno pedaço será colocado entre a gengiva e os dentes. Deve se tomar o cuidado de não engolir por acidente o sumo ou pedaços da planta.
  4. Uma porção pequena deverá ser engolida e após isso, é necessário esperar por 24 horas e observar qualquer ocorrência como vômito, tontura ou qualquer outra reação que indique que o a planta ingerida a tenha causado.
  5. Outra porção maior da planta deverá ser novamente ingerida e mais 24 horas são necessárias para certificar que ela não faz mal.

Somente após passar por todas as etapas acima, tal recurso poderá ser ingerido como alimento. Porém, como já foi dito antes, tudo isso requer pelo menos 48 horas para ser executado, o que já é um tempo considerável.

Outra maneira de se testar a comestibilidade de certas plantas implica em observar se macacos estão comendo o recurso em questão. Se eles estiverem, há uma boa chance de que tal recurso também possa ser consumido por seres humanos. Já ouvi pessoas dizerem que se os pássaros consomem algum recurso, nós, humanos, também podemos consumi-lo. Porém, essa ideia parece ser errônea, uma vez que tais animais podem e conseguem digerir certos tipos de alimentos que seriam incompatíveis com a nutrição e alimentação de humanos.

Uma vez tendo apontado os aspectos acima, vale a pena dizer que o melhor a fazer, ao se tratar da coleta e utilização de plantas como recursos alimentícios, é utilizar somente plantas e recursos sobre os quais venhamos a ter absoluta certeza quanto sua comestibilidade. Dessa maneira, evitamos qualquer tipo de acidente e intoxicação com plantas não-comestíveis da flora local.

Entretanto, em se tratando do preparo de comidas mateiras fora de uma situação de sobrevivência, há certos pratos que requerem ao menos um componente exótico do mato e que são verdadeiros banquetes para aqueles que têm o prazer de provar tais iguarias. Podemos citar aqui a famosa “farofa de tanajuras”, que utiliza o abdômen de formigas como parte crucial de sua receita. Lembro-me de uma ocasião aqui em Minas Gerais onde moro, em que um amigo havia levado para um acampamento uma sacola com centenas dessas formigas, recém-colhidas da região. Preparamos uma deliciosa farofa com alho, molho de alho, cebola e ora-pro-nóbis, além, obviamente, das tanajuras. O resultado foi surpreendente pelo sabor e qualidade da refeição, que em nada deixava a desejar de uma refeição convencional preparada nos melhores restaurantes de comida mineira de Belo Horizonte. Digo isso sem exagero algum de minha parte.

comida-mateira-farofa-içá-tanajura

Farofa de içá (tanajura). Foto: Reprodução/Mercadinho Piratininga

Outro exemplo são as larvas de tenébrio desidratadas. Podem ser preparadas em uma pequena panela ou frigideira e oferecem uma refeição (podendo ser acrescida de folhas verdes como ora-pro-nóbis ou mesmo o assa-peixe refogado) que possui um sabor de crustáceo, perceptível lá no fundo do paladar.

Folhas de assa-peixe fritas e preparadas no estilo “à milanesa” oferecem ao apreciador de comidas mateiras exóticas um prato cujo sabor se assemelha um pouco com lambaris fritos à milanesa.

comida-mateira-assa-peixe-folha-peixinho

Folhas de assa-peixe empanadas. Fotos: Reprodução/Bela Gil

Em outra ocasião, eu preparei feijão tropeiro com ora-pro-nóbis em um acampamento. Para isso, levei feijão cozido e já pronto em pequenas embalagens, com uns poucos ingredientes como farofa pronta, além de linguiça que foi frita no local. O resultado também foi uma refeição de fazer inveja nos antigos tropeiros que cortavam os sertões de Minas Gerais.

Houve uma vez que um quarto traseiro de um veado recentemente atropelado e recolhido da rodovia MG-10, próximo à onde resido em um sítio, possibilitou um churrasco no melhor estilo “homem das cavernas”. Tal experiência foi devidamente registrada em vídeo para meu canal no YouTube, em um documentário que eu mesmo produzi sobre a pré-história da região de Lagoa Santa. O sabor primitivo daquela refeição foi inigualável.

comida-mateira-giuliano-toniolo-aventura-lagoa-santa

Preparação da carne de veado. Foto: Reprodução/Giuliano Toniolo, “Uma Aventura Pré Histórica em Lagoa Santa”.

E foram inúmeros alimentos e refeições, cozidas, assadas e preparadas de forma simples, sem a necessidade de haver todos os recursos comuns presentes em uma cozinha contemporânea, que possibilitaram a mim e aos presentes (caso estivessem lá) uma experiência gastronômica impar, durante todos esses anos que tenho cozinhado no mato.

Contudo, nem sempre tempo ou disposição para preparar refeições desta forma, como é o caso de quando estou ministrando treinamentos de minha escola, e nessas circunstâncias, eu dou preferência a comidas fáceis e rápidas de preparar, como bebidas e comidas instantâneas que requerem apenas a adição de água quente. Nessas ocasiões, o tempo é fundamental para mim pois estou trabalhando e não posso me dar ao luxo de gastar muito dele com minha alimentação. Neste caso, a comida é apenas combustível para que eu consiga desempenhar as atividades profissionais de minha escola mateira.

comida-mateira-giuliano-toniolo-mestre-do-mato

Foto: Reprodução/Mestre do Mato ©

Os utensílios que uso em geral também são bem simples, porém, eficientes para que eu dê conta de tudo aquilo que preparo e consumo no mato, em se tratando de comida. Costumo usar para isso as canecas de aço inox de meus cantis militares, que funcionam como pequenas panelas e de onde, também, se pode comer diretamente. Esse é meu kit mínimo para cozinhar, onde há, também, uma colher simples, com a extremidade dobrada e que fica dentro do kit, na bolsa do cantil.

Quando levo meu kit completo de cozinha, eu tenho comigo uma frigideira, um pequeno caldeirão de alumínio, uma caneca esmaltada ou Kuska de madeira, além de uma pequena cumbuca feita com a metade de um coco cortado. Isso serve como um prato, que é acompanhado de um garfo de 2 pontas apenas, feito com arame dobrado, segundo o tipo de talher usado à centenas de anos atrás. E essa é toda minha cozinha mateira, por assim dizer. É com ela que a magia gastronômica acontece nas matas que frequento, quando quero dedicar um tempo para o preparo de minhas refeições mateiras e, por que não dizer, exóticas.

Uma oficina bastante popular em meus cursos de bushcraft é a de obtenção e preparo de comidas mateiras, em que os alunos cozinham seu arroz ou sopa de legumes em uma panela de bambu (descartável) e que, apesar de parcialmente queimada, consegue cozinhar a comida muito bem e é tão boa quanto uma panela convencional de qualquer cozinha de uma casa.

Há a disposição de quem vive no Brasil uma infinidade de recursos naturais de flora. O Ministério da Saúde elaborou uma lista com 71 plantas medicinais de interesse ao SUS, inclusive algumas delas comestíveis, e o Embrapa possui publicações sobre 19 PANCs – plantas alimentícias não convencionais – que todos em nosso país deveriam conhecer. Vale a pena dar uma pesquisada para aprender mais sobre tais recursos valiosos. Lembre-se de que o conhecimento não pesa, não faz volume e pode vir a fazer toda a diferença em uma situação de sobrevivência com mais de 72 horas (onde a comida passa ser uma necessidade maior). Pode também servir simplesmente para aproveitar o mato com uma refeição diferenciada.

comida-mateira-giuliano-toniolo (2)

Foto: Reprodução/Instagram:@giulianotoniolo

Muitos de meus amigos mateiros aqui no Brasil possuem ótimos vídeos em seus canais, onde eles retratam o deleite de moer, preparar e beber um simples café no mato e o prazer que uma atividade como essa oferece à quem busca na mata, a satisfação das coisas simples e os benefícios de uma interação com o mundo natural, nesses moldes.

Em todo caso, como já bem observado por um bom amigo meu, o David McIntyre, o segredo para um bom café (bem como de outras comidas) são três coisas: localização, localização e localização.

Portanto, caso ainda não o tenham feito, experimentem preparar uma deliciosa comida mateira in loco e conheçam um dos melhores prazeres associados à prática do bushcraft.

 

Você também pode gostar

Sem comentários

Deixe um comentário